segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Sherlock Holmes: dedução, indução e abdução

Regra geral, pensamos em Sherlock Holmes como um dos grandes mestres do raciocínio lógico-dedutivo. De facto, essa vertente está sempre presente nas suas investigações.
No entanto, em rigor, e aprofundando mais a questão, que tipo de raciocínio(s) deveremos considerar na resolução de um caso típico de Holmes? Concluiremos que, na verdade, além da indução e da dedução que se encontram, sem dúvida, presentes, o tipo de inferência (raciocínio) mais utilizado por Sherlock Holmes é a abdução.



De facto, é a abdução que impera em toda a busca de soluções nos casos policiais. É o tipo de raciocínio que faz parte, igualmente, de toda a investigação científica.

Vale a pena lembrar o nome de quem prestou grande contributo para a clarificação de todos estes aspectos relativos ao raciocínio: Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo, cientista e matemático norte-americano. O seu pai, Benjamim Peirce, era um dos mais importantes matemáticos de Harvard, na época. Dedicou grande parte da sua vida e dos seus estudos à Filosofia e à Lógica, sendo conhecido, sobretudo, pela sua contribuição nestas áreas.

Peirce elaborou a sua teoria dos três tipos de inferências no contexto da questão dos métodos das ciências. De acordo com ele (uma vez que o chega a afirmar), a abdução é o tipo mais importante de raciocínio. A abdução é importante na medida em que, para além de dar origem às hipóteses numa investigação, contribui para a teoria acerca da percepção, tem um papel relevante na memória e é essencial para a história. Para além disso, seria a essência do pragmatismo, entendido por Peirce como a lógica da abdução.

Que é, então, concretamente, a abdução? Não esquecendo a dedução e a indução...
A dedução e a indução são conhecidas como inferências, ou seja, como o meio pelo qual chegamos a concluir alguma coisa a partir de outra (ou outras) já conhecida(s).
Na dedução, se conheço X, infiro (concluo) a, b, c, d, ... conforme os casos. Na indução, dados e conhecidos a, b, c, d, ... ou seja, vários casos particulares com características comuns, infiro (concluo) X. A dedução é um procedimento pelo qual, um facto ou um objecto particular passa a ser conhecido pela sua inclusão num conhecimento ou numa teoria geral previamente definida e tida como certa ou verdadeira. "Caminha", portanto, do geral para o particular. O raciocínio dedutivo pode, no entanto, desenrolar-se também do geral para o geral. A indução percorre um caminho contrário ao da dedução: de casos particulares para uma lei, uma definição ou uma teoria geral.
Dedução e indução possuem regras precisas que devem ser respeitadas para que as conclusões obtidas possam ser consideradas válidas. A verdade de qualquer conclusão, numa investigação, dependerá da validade dos raciocínios que a ela possam ter conduzido.

Voltando à abdução, Peirce considera que, além da dedução e da indução, existe uma terceira modalidade de inferência, a abdução, sendo esta diversa na medida em que não é propriamente demonstrativa. A abdução é uma espécie de intuição que procede passo a passo para chegar a uma conclusão. Mais importante ainda, a abdução é a procura de uma conclusão a partir da interpretação racional de sinais, de indícios, de signos. Um espírito observador é extremamente importante, já que dificilmente deixará escapar qualquer indício que possa ter interesse para uma investigação. Será com base na recolha do maior número de indícios ou sinais que todo o raciocínio abdutivo poderá operar. Adquirido um determinado "material" de trabalho, a abdução sugere hipóteses explicativas. Trata-se de uma actividade de intensa imaginação e criatividade. Neste sentido, o investigador é verdadeiramente um espírito inventivo.


Charles Peirce (1839-1914)

Eis-nos, pois, em pleno universo sherlockiano! O exemplo dado por Peirce, para explicar em que consiste a abdução, é, precisamente, o dos contos ou histórias policiais. Refere-se ao modo como os detectives vão recolhendo indícios ou sinais, com base nos quais procuram formar uma teoria explicativa para o caso que investigam.A abdução assemelha-se à intuição do artista e à capacidade de adivinhação do detective, uma vez que estes, antes de iniciarem os seus trabalhos, contam apenas com alguns sinais, os quais lhes sugerem ou indicam pistas a seguir... Os historiadores também costumam usar a abdução.
Peirce descreve a abdução como "spontaneous conjectures of instintive reason" (instinto racional).

Diz-nos também:
"A abdução, no fim de contas, não é senão conjectura."

E ainda:
"A sugestão abdutiva advém-nos como um lampejo. É um acto de introvisão (insight), embora de uma introvisão extremamente falível."

Pode dizer-se, em síntese, que a indução e a abdução são procedimentos racionais que utilizamos para a aquisição de conhecimentos, ao passo que a dedução será o procedimento racional que empregamos na verificação e comprovação da verdade dos conhecimentos já adquiridos (por exemplo, a análise efectuada com vista à confirmação da veracidade das hipóteses). Típico de várias etapas das investigações de Sherlock Holmes, nomeadamente na recapitulação do caso, aquando da decifração do enigma inicialmente existente.

Tudo o que procuramos averiguar, acerca de Sherlock Holmes e do seu brilhante criador, nos conduz a um universo fascinante: o da vida humana. Este universo do ser humano é também o da sua procura de compreensão e de explicação de si e do mundo. E, neste caso, uma interpretação pode fazer toda a diferença!

Um pequeno exemplo:
" (...)- O meu amigo vê, mas não observa. A diferença é óbvia. Por exemplo, já viu muitas vezes a escada que sobe do vestíbulo para esta sala.
- Muitas vezes, sim.
- Quantas?
- Ora, umas boas centenas.
- Então quantos degraus tem a escada?
- Quantos?! Não sei.
- Precisamente! Não observou. E, todavia, viu. Era exactamente aí que eu queria chegar. (...)
Arthur Conan Doyle, "Um escândalo na Boémia"
Ou ainda:
"(...) ele nunca se mostrava tão formidável como depois de passar dias a fio refastelado na poltrona, a improvisar ao violino e a folhear os seus volumes em letra gótica. Era então que a ânsia da caçada o invadia de súbito e as suas brilhantes capacidades de raciocínio dedutivo ascendiam ao nível da intuição, até que aqueles que não estavam familiarizados com os seus métodos o olhavam de viés, como alguém detentor de conhecimentos inalcançáveis pelos outros mortais. (...)"
Arthur Conan Doyle, "A Liga dos Ruivos"

( Imagens: daqui e daqui )